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Os Visitantes do Quarto de Mia Bennett


 O Jovem Peculiar

Desde que nascera, Mia Bennett sempre fora proprietária do pequeno belo prédio, situado na avenida principal de sua pequena cidade, em Benfort; um de beleza incomum, de cor extremamente escura — como casa fúnebre —, enfeileirado entre dezenas e dezenas de casas e prédios de tons comuns, monótonos e previsíveis como deveriam ser.

Certo dia, alguns poucos meses antes de Mia completar seus dezoito anos, foi encarregada de todo o edifício, todos os quartos, todos os empregados, todo grão ou átomo que constituísse o prédio. Mia possuia listas e listas de mudanças que queria adotar ali: movéis melhores — é claro —, paredes em tons pastéis, quartos cada vez mais aconchegantes e receptivos, empregados bem-educados e sincronizados na harmonia que era a mente de Bennett. Contudo, mesmo sendo seu principal objetivo adquirir inquilinos e lhe dar o melhor atendimento possível, Mia não fez festa de inauguração, não distribuiu panfletos anunciando quartos disponíveis ou sequer acolheu os visitantes desesperados, que buscavam um abrigo. Ao invés disso, fechou seus portões, escondeu seus empregados e foi para seu quarto mais querido, o que ficava no centro de todo edifício, que possuía vista para a pequena — contudo de uma boa vista — cidade. Ele era o mais bem cuidado, suas paredes eram da cor rosa pastel, enfeitado com todo tipo de flores e quinquilharias que Mia julgava ser importante para ela, todas ornamentadas em uma decoração que lhe tirava o ar.

Certo dia, enquanto descansava naquele quarto distinto, em sua poltrona de couro que dava para a ampla janela, Mia observou um jovem andar lentamente por entre as ruas sinuousas, sempre sorrindo e olhando para todos os detalhes, com sua pequena maleta — de viagem, Mia presumiu — na mão. Ele não entrava em nenhuma das casas e tampouco se detinha nas calçadas em frente aos prédios monótonos. Apenas andava, andava e observava tudo por onde ia.

Uma vez, em uma de suas espiadelas matinais no jovem peculiar, Mia se viu  agachar rapidamente por detrás de sua poltrona: o jovem agora observava o seu prédio. A cabeça do rapaz pendia para o lado enquanto ele fitava admirado a estrutura do prédio, seus olhos deslizando para as janelas descobertas, rindo consigo mesmo sobre algo que Mia nem sequer podia imaginar que seria. A campainha logo soou nos andares inferiores e Mia desceu escadarias e mais escadarias, até que estivesse em frente às portas que eram amarelas por dentro e pretas por fora. Suas mãos suadas hesitaram por um momento, mas então abriram as portas do salão de entrada, revelando o corpo alto e esguio do outro lado. O jovem, contudo, não olhava para Mia, mas sim para o lado de dentro, o sorriso se abrindo cada vez mais.

— Ora, não é incrível isto?! — ele disse, seus olhos finalmente pairando sobre a figura ofegante de Bennett — Eu adorei!

Mia, envolta em pensamentos confusos e frenéticos, deu um rápido meio sorriso murmurando um “obrigada”, com ambas mãos ainda paradas nas maçanetas das portas. Então o jovem fez menção de entrar, tirando Mia de seu transe. A jovem, ao perceber que havia aberto seu estabelecimento, logo fez menção de fechar novamente, como quem caía em si.

— Sinto muito, não estamos recebendo clientes agora e…

— Ah, não! Não, não! Eu só estava curioso sobre como era o lado de dentro, eu também não estou a procura de um lugar pra ficar, na verdade. 

Depois de alguns longos segundos se encarando, Mia pigarreou e o jovem piscou, saindo de qualquer tipo de transe que estivesse.

— É um… um belo edifício! — ele disse por fim, sorrindo. Depois de uma pausa apontou para o lado de dentro com a mão livre. — Teria algum problema se eu visitasse durante o dia? Eu definitivamente estou curioso para conhecer mais sobre o prédio que por fora é belo e escuro, mas que por dentro é um show de cores e imprevisibilidade.

Mia sorriu e acenou com a cabeça, se despedindo do jovem que voltou nos dias e meses seguintes, sempre estudando e observando com muito cuidado cada canto de todo o prédio, menos o quarto do centro — aquele que Mia mais velava.

Certo dia, Quinn — o jovem peculiar — depois de visitar todos os quartos pela inumerável-gésima vez, parou à porta daquele que Mia gostava, enquanto a jovem estava na cozinha pegando mais alguns pães e copos de café. Ele ficou ali, em uma confusão de curiosidade e medo, encarando a madeira tingida de rosa, até que a sombra de Bennett surgiu pelo corredor, com uma bandeja em mãos. A moça parou a meio caminho, os olhos arregalados e cheios de temor. O jovem logo se apressou a explicar que não havia visto nada e que nem iria, se ela não quisesse.

— Eu estou maravilhado pelo que já vi, Mia, mas sei que há algo ali que é melhor e mais… importante. Eu sempre venho aqui na esperança de que algum dia poderei não só alugar, mas possuir um dos quartos, mas nunca me contentei com os que vi. São adoráveis e eu os amo, mas eu quero este: aquele que mais importa para você. — suas palavras eram velozes e gentis, mas carregavam uma honestidade dolorosa. — Você confiaria ele à mim?

Mia, de fato, o confiou ao jovem peculiar — por certo tempo. Um dia, ao vê-lo pôr suas próprias coisas no quarto e mover-se por ele como quem já era dono, fazendo minúsculas mudanças aqui e ali, Bennett sentiu medo e se arrependeu do que fizera, passando os dias procurando meios de expulsá-lo de lá, do lugar que sempre fora de um jeito, do jeito que lhe era familiar e confortável. Quinn percebeu que havia algo de errado e constantemente questionava a proprietária o que havia acontecido, se ele havia feito algo de errado. Mia, por sua vez, desconversava e fugia para andares e quartos que o jovem não podia chegar, perguntando por entre linhas se outro quarto comum não seria melhor para ele, do que aquele que ela tanto zelava e ele tanto queria.

Certo dia, Quinn, já aflito e conformado, perguntou uma última vez o que havia acontecido e por que a jovem sumia por entre paredes e não retornava por dias. Com pesar, Mia falou aquilo que praticava por entre os tijolos e quadros, expulsando o jovem de seu quarto, pedindo que o mesmo fosse para outro quarto, mesmo sabendo que ele não poderia se contentar e provavelmente saíria do prédio. Para ela, o jovem significava mudança, e mudança sem volta, transformando o seu quarto em algo diferente, o diferente que ela tanto evitava.

Assim, o quarto de Mia Bennet fora reorganizado novamente, e tudo aquilo que a deixava desconfortável fora levado junto com seu primeiro visitante, aquele que a fazia companhia pelas manhãs, aquele que admirava quartos que nem mesmo Mia considerava, aquele que se tornara seu melhor amigo, que suas manias suportava. Quinn Ford era seu nome.



O Andarilho Encharcado

Pouco tempo depois que Quinn se mudara do prédio que pertencia à Mia Bennett, um vulto apareceu pelos arredores da cidade. Mia o conhecia e eis que o mesmo já havia outras vezes batido à sua porta, sempre ensopado da chuva, desesperado para entrar. Mia nunca confiara nele, por isso sentava-se em sua poltrona de couro que dava para a ampla janela, no quarto que mais amava, e o observava bater nas outras portas, entrando tão rápido quanto saía das casas.

Contudo, após observá-lo por tanto tempo, Mia começou a reparar em detalhes que nunca vira nas noites em que ele saía em busca de abrigo: suas roupas eram sofisticadas e chiques, apesar de molhadas pela chuva; o jeito como sorria para os proprietários era encantador e fazia com que todos pensassem duas vezes antes de contradizê-lo. Com o tempo, Mia passou a desejar que ele batesse novamente em sua porta e — como esperado — o homem bateu. Era noite (como sempre) e suas vestes estavam encharcadas (como sempre), apesar de nunca chover em Benfort.

— Ah! — ele exclamou surpreso, sorrindo para Bennett — Bom, eu já estava indo embora, na verdade já tinha até solicitado uma reserva no prédio à frente… — ele gesticulava, quando então parou aos olhos brilhantes e curiosos da jovem às portas — Meu santo Deus, você tem olhos lindos! E cabelos também! Quem estou querendo enganar? Tudo em você e em seu prédio é incrível!

Sem sentir necessidade alguma de perguntar, o homem foi logo adentrando o espaço, olhando para o interior, não muito interessado nos detalhes, mas sim nas escadarias ornamentadas.

— Uau! É o prédio mais lindo que já vi! — ele disse, passando as mãos pelo corrimão, impulsionando-se para cima, andando pelos quartos sem se demorar muito em qualquer um deles. — É tudo tão lindo… e você que fez tudo isso! Uau, garota, você é demais!

Bennett não teve tempo suficiente para reagir, mas prendeu-se aos elogios que há tanto sentia falta, sorrindo consigo mesma, orgulhosa pelo trabalho que havia feito ali.

Não demorou muito para que o homem encontrasse a porta mais ornamentada de todas. Seu corpo, em posição familiar, estava imóvel defrente para o quarto de Mia, já com a mão na marçaneta. Do lugar de onde estava descia pingos de suas roupas encharcadas, formando poças e mais poças de água pelo edifício, um rastro que Mia não se preocupou em apagar.

— Aqui, com certeza, deve estar tudo que é mais lindo e importante em todo edifício, certo? — ele disse em tom divertido, abrindo a porta. Seu rosto iluminou e seus pulmões inspiraram o cheiro das flores tão bem cuidadas. Ele gargalhou consigo mesmo e olhou para a jovem parada ainda no corredor.

— É esse aqui que eu quero, senhorita.

— Ah, não sei não, é que…

— Olha, eu entendo. Você quer que seja intocável e permaneça do jeito que está, não é? — ele disse, cruzando os braços — bom, isso é loucura. Isso é uma hospedaria, você deveria receber as pessoas e deixá-las viverem aqui, com suas próprias malas e pertences importantes que carregam com si, e não esperar que vivam aqui sem mover nada do lugar. É simplesmente loucura. Qual o ponto de se ter cuidado tanto disso, se não é confiá-lo à alguém?

Mia sabia que era verdade e que fora imprudente ao se esforçar tanto para fazer de seu edifício um lugar tão lindo e bom, para no fim não deixar que ninguém o desfrutasse. Rápida demais, deu as chaves do quarto para o homem que não hesitou em pegá-las, logo tirando seu casaco e o jogando em algum canto, observando todo o quarto e se atirando sobre a poltrona de Bennet. A jovem constantemente protestava e o demandava explicações, mas Mason sempre tinha a resposta correta, sempre afirmando que ela deveria ser recepitiva e aceitar mudanças, sempre a induzindo a acreditar que eram flores demais e que deveria haver também mais quadros de pintura ou mais cortinas.

A jovem, apesar de sempre aflita por ter que fazer mudanças tão drásticas, passou a perceber que gostava dos quadros e das cortinas, que certas coisas que Mason indicava eram boas e importantes no quarto também. Assim, cegou-se a si mesma, acreditando que todas as mudanças — e coisas de que abria mão, para o homem poder se sentir confortável — eram necessárias e lindas, não se atentando à grande poça de água e lama que tomava o chão, aos constantes esforços de Mason para arrancar de lá todas as flores que Mia amava, as substituindo por seus próprios livros e objetos favoritos.

Certo dia, Mia enfureceu-se com o homem, pensando consigo mesma que, apesar de ele ter o direito de acrescentar suas próprias coisas no lugar onde morava, ele não tinha o direito de arrancar e mudar tudo o que Mia queria que estivesse ali, principalmente sem sua permissão. Este é o meu prédio, ela pensava enquanto andava nas calçadas de Benfort. Então, em uma noite de verão, Bennett foi ao quarto em que o homem havia se hospedado e viu seu estado, completamente sujo e encharcado, as flores despedaçadas, a beleza que Mia tanto prezava sendo levada. Cheia de remorso, Mia passou os próximos seis dias reorganizando e limpando toda sujeira. Removeu a lama, jogou fora todos os livros, repôs as flores, deixou os quadros e as cortinas. Ao fim, percebeu que gostava mais do lugar como havia ficado, apesar das mudanças sofridas. Pensava consigo mesmo como não havia pensado em pôr quadros ou cortinas, lembrando-se do jovem peculiar e de sua maleta, de como ele havia sido tão cuidadoso e admirador de todos os outros quartos, não só daquele que ele mais queria. Pensou em como ele era limpo e em com não deixava bagunça por onde passava, sempre cuidadoso e sensível ao perguntar. Então chorou amargamente e esperou Mason voltar.

O homem já esperava ser expulso e nem se deu o trabalho de no prédio entrar. Tocou a campainha e esperou Mia até ele chegar. Disse que não se hospedaria ali mais, que suas ideias eram controversas, que os dois nunca entrariam em acordo, que ele não mudaria por ela e vice e versa. Então se despediram e o homem pelas ruas se foi, e Mia, chorando, ao seu prédio retornou. 

Assim, o quarto de Mia Bennet fora interditado, trancado e proibido de se entrar, e tudo que a deixava desconfortável fora lavado após seu segundo visitante partir, aquele que a ensinou uma lição importante, de que se deve estar aberto à mudanças — desde que haja mútuo acordo de que aquilo será bom e não prejudicial. Mason Armstrong era seu nome.



Epílogo

Algumas semanas depois, o prédio finalmente teve sua abertura e clientes começaram a chegar. Muitos buscaram consquistar a confiança da proprietária, para poder possuir o quarto que ela mais prezava. Contudo, entre todos eles, em nenhum Mia confiava. E por vezes, ali no quarto que mais amava, sentada à poltrona de couro que para a ampla janela dava, Mia observava o jovem peculiar andando pelas ruas de Benfort, nunca parando em lugar algum para se hospedar.

Um dia enviou uma carta para Quinn, por meio de um de seus empregados, pedindo desculpas por tudo que havia feito, pelo modo que havia o tratado. O jovem respondeu no mesmo dia com outra carta, dizendo que estava tudo bem e que a Mia perdoava. A jovem, cheia de esperanças, aguardou que o jovem retornasse para seu prédio, que pedisse mais uma vez o quarto que ela mais prezava. Contudo, um pensamento a enchia de temor. Pensava “ele jamais pedirá o quarto novamente, não depois da forma com que o tratei. Talvez eu devesse oferecê-lo à ele antes que ele encontre outro prédio que admire também, quem sabe ele não aceitará?”.

Como você já pode bem imaginar, já era tarde demais. O jovem ainda a visitava, mas nem perto daquele quarto chegava, e agora em outro prédio se hospedava: aquele que para o de Mia defrente ficava.

Bennett chorou e se arrependeu de tudo que havia feito, sentada em sua poltrona, lembrando daqueles bons tempos em que o jovem admirava os pequenos detalhes, sempre sorrindo para o além. Se viu desejando que ele fosse embora do outro prédio, apesar de saber bem que ele era certo. Pensava consigo mesma que, se tivesse a oportunidade, lhe daria a chave daquele quarto e dessa vez perguntaria o que ele gostaria de acrescentar, para que ali se sentisse confortável. Por que sabia que ele era o único em que podia lhe confiar aquele quarto, o único que por todos os outros havia passado e admirado, o único que não forçou sua entrada ali, mas que pacientemente a oportunidade aguardava. Quinn Ford, o jovem peculiar de Benfort.

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